POCAHONTAS

20:41




Poca verossimilhança...




Outro dia estava assistindo (pela milésima vez) Pocahontas, aquele lindo conto da Disney, feito pra ensinar às criancinhas duas lições muito bonitinhas: “o selvagem e o diferente não é pior que a gente” e que “para o amor tudo é possível”. Assisti candidamente, com a mesma atenção que eu dispensaria quando ainda tinha dentes de leite, vibrando a cada descoberta da doce Pocahontas e dos seus prodígios físicos, estremecendo a cada perigo que o belo casalzinho era exposto.
No entanto, depois de destruída a aura de pureza da infância, assistir desenho animado não é a mesma coisa de antes. Absolutamente. Por isso certas conclusões não escaparam ao meu sentido. Fiquei observando Pocahontas, sua cinturinha de vespa é um despropósito, os longos cabelos negros balançando ao vento são um insulto. Poxa, a Pocahontas não era para incluir no mundo da fantasia das princesinhas brancas as princesas que não se encaixam no perfil europeu? Ainda assim resolvi ignorar os traços tão destoantes com a sua presumida origem e resolvi fingir certas “verdades” para dar maior verossimilhança à querida Pocahontas.
a) Pocahontas é na verdade fruto da miscigenação entre brancos e índios. Sua mãe, uma branca aristocrática, a deixou na aldeia onde nasceu seu pai pela impossibilidade de explicar a seu marido - que ficara em casa enriquecendo enquanto ela “desestressava total” na selva – como ela concebera uma criança tão bronzeada.
b) Pocahontas é ancestral direta de Beyoncé, numa época em que ela ainda não precisava tirar a costela.
c) Ela foi uma das pioneiras da ginástica olímpica.
d) Ela inventou o salto duplo carpado de cachoeira.
e) Ela é uma índia.
Estabelecidos esses acordos para com o meu senso de realidade me surpreendi numa pergunta cada vez mais freqüente: eu deixaria minha filha assistir isso? Essa alienação açucarada, esse amor-idealizado-com um irritante happy end, essa estética irreal, essa personalização do príncipe inexistente na realidade. Um verdadeiro perigo para uma mente em formação. Não vou, não vou e não vou deixá-la assistir esse besteirol americano versão kids idiot! Vou protegê-la disso, e no máximo deixar que ela assista Mulan, e é claro, Maddy. E, além disso, vou vigiá-la para que nenhuma mãe de coleguinhas reacionárias desencave um DVD Edição Premium da Disney e exiba esse perigoso material entre suquinhos e bolachas recheadas. Bebê, mamãe cuidará bem de sua formação intelectual.
E que ninguém me venha com essa lenga-lenga de que é apenas um desenho animado! Já pensou ter que explicar para minha pretinha porque Pocahontas não se parece com as índias que ela viu no Globo Repórter? E pior, explicar para ela que não, ela não pode se jogar de cima da cachoeira que nem a Pocahontas, porque ela é protegida pelos espíritos da floresta e você, pretinha da mamãe, nem o Santo Capacete livraria da paraplegia. Talvez meu amor, não sei ao certo, mas depois eu ligo para WWF e pergunto se ela trabalha lá, porque a sua dedução é correta, conversar com árvore parece mesmo coisa de ambientalista. Meu bem, depois a gente termina essa conversa... o quê? Silicone? Bojo? Não amor, é que as outras índias do mundo moram em lugares em que a força da gravidade é mais acentuada. Deus me livre deste sufoco!
Se esta infame se materializasse eu faria umas perguntinhas a ela. Em primeiro lugar como, em contestável sã consciência, ela pôde trocar aquele guerreirão da tribo pelo insosso Martin? Em segundo lugar, que folha ela coloca naquele cabelo?
E se um dia a Globo resolver reprisá-la pela trocentésima vez, espero que minha pequena esteja fora de casa, porque eu sei, a criança, a que há em mim, há de suplicar que eu assista só para me lembrar o quanto é bom ser inocente o suficiente para enxergar apenas flores no inverossímil. Sei que vou esperar a tarde inteira naquela ansiedade de criança que vai assistir algo que a encanta, porque ali o selvagem e o diferente não é pior que a gente e para o amor tudo é possível, se você não abstrair, é claro. Vou lembrar o quanto é bom não ser corrompida pela sordidez do mundo.
Então talvez eu deixe minha cria assistir, a inocência é inerente à infância. Mas se ela me disser “mãe, não sou mais bebê para assistir isso” eu direi: “Filha, sabe aquilo que te falei de manter a inocência, ler nas entrelinhas e não dar cedo? Pois é, esse é um momento oportuno para conversarmos sobre.”

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