História de verões tantos

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Gostava do sol, mas, o exibicionismo do astro rei naquele disparate fritante de verão não poderia ser apenas aquecimento global, ou antes, era a deliberada vingança pelo disparate destruidor da humanidade. Amava o verão, mas tardes de compulsório ócio em pleno verão só não lhe eram mais aflitivas que tardes de compulsório ócio interrompidas para pagar contas alheias. Mas a criação católica tinha em si tomado rumos tão tortuosos e peculiares que aceitava com resignação pequenas penitências, minúsculos flagelos na esperança de disciplinar-se para a conformidade e a resignação maior que insistiam por força de rebeldia a não vir.
Por isto ia pagando as contas alheias com a serenidade que conseguisse angariar no tédio desses dias de verão. Era com resignação que se dirigia ao ponto de ônibus, como um autômato de trajeto conhecido e estudado. Qualquer humanidade pelo caminho escapou-lhe aos sentidos, mas se a visão periférica era em si a sensibilidade sempre em alerta, o olfato é em todo ser senão o mais, um dos mais traiçoeiros sentidos. E só por eles pode notar, já no ponto, abrigando-se insatisfatoriamente do sol, que vinha um cativante casal.
Ela, que nutria um horror brando por pessoas cativantes, não podia sequer supor que um dia na vida veria indiferentemente um par amante dessas pessoas irritantes que, quando não lhe incutem um sorriso n’alma, servem só de profundo aborrecimento sorridente. Quieta estava, quieta manteve-se. Também porque queria se certificar que o perfume vinha do par de meliantes. E vinha. Naquele calor absurdo, onde o certo é transpirar até sentir ânsia de tirar a roupa encharcada, eles se haviam perfumado um para o outro. E a natureza, alcoviteira sem par, os mantivera frescos e lindos dentro de suas belezas medianas.
E ela tinha uma séria tese que a mais ofensiva beleza era a mediana, a quase comum, porque nos parece tão plausível e misteriosa que torcemos para que um desses programas de fim de semana descubra a tal beleza e lhe promova um dia de realeza, que lhe revele a tal excepcionalidade que a mediocridade de nossa avaliação escondeu.
Ela não era de despeitos tão profundos, e procurava a razão de seu incômodo inédito com a felicidade de outrem. Felicidade que ostentavam com serenidade que só os cativantes felizes têm. Felicidade incomum, da pós adolescência tranqüila, da beleza mediana.
Conhecia-os, de vista, de passar, de não se ater. Mas conhecendo-os casal agora, sabendo-os um do outro, usou de subterfúgios comuns e quase, quase conseguiu olhar nos olhos de cada um dos dois.
Ele era mais conhecido do que podia crer. Seus traços que oscilavam entre o masculino e o infantil, entre o mediano e o exótico engolfou-lhe a alma com lembranças do primeiro amor. Eram similares no que a lembrança pode afirmar seguro sobre alguém de quem não há mais como recordar detalhes. Comuns, ela se disse para ser cruel com a lembrança e o presente. Mas não havia como não entender que capitulassem tantas fêmeas aos sorrisos singelos, àqueles traços desejando ser clássicos mas não negando raízes outras. À perigos da beleza mediana.
Quantos meninos assim já vira, já encontrara, já associara à sua remota paixão? Eram todos mais novos, pois na sua memória, no seu não mais ver, ele se conservara púbere, imaturável e era, ao fim e ao cabo, todos aqueles meninos e nenhum deles o podia ser. E sendo todos mais novos, tomava-se de ternura quase materna pelos desconhecidos, e sem que soubessem eles, em sua alma eram já primos, poderiam confessar-se e ouvir a terna reprimenda que ela guardava para todos os homens do mundo.
Era constatação para sorrir condescendente. Mas não acabara.
A menina estava ali, à espera, sem que soubesse, de sua mordaz avaliação.
A primeira coisa que mentalmente ouviu-se dizer-se é que não poderia sê-la. Com isso pulou todos os prelúdios de acusações e condescendências, porque, superior era à condescendência que podia dispensar-se era o perdão que poderia conceder-se.
A beleza mediana da enamorada foi seu desejo da puberdade. As formas esculpidas, o cabelo longo, a beleza compreensível. Sorria com seus dente regulares como se soubesse que a que observava descobria as incompatibilidades que as impedia de identificarem-se. E por isso ela perdoou-se o mal fadado romance, as tolas tentativas, o dilaceramento do fim. Perdão redentor, que redimiu-lhe a tarde e parte da vida. Perdão porque compreendeu que eles eram felizes, ostensivamente, como só um casal cativante pode ser.
Foi assim que uma vida passou-se em dois, talvez três minutos e que a mulher perdoou a eternidade da menina que fora.
Cativante que não era, viu o transporte chegar com menos aflição, entrou com menos desgosto, seguiu com mais amor. Só porque não podia sê-la.

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