Bom mesmo é estar entre amigos ou Jogo do Contente

06:45

Há meses eu tento jogar o jogo do contente. Sabendo que, o level máximo do jogo pertence a Polyanna, a loirinha de sardas de Eleanor Porter. Só ela joga de verdade. Eu faço o jogo do menos enraivado. Pois é, mas não acho personagens loiras críveis, a menos que sejam fruto de uma compra de água oxigenada a trocados contados na farmácia da esquina. Menos do que isso e meu senso de verossimilhança diz a essa suposição: acesso negado. Mas a leitura, ainda infantil me capturou, e todos os fracassos no intento de jogar o tal jogo, deixaram-me uma obrigação moral cristã em tentar esse negócio de olhar pelo outro lado da questão. Deve ter haver com essa paradinha do próximo, de amar como a ti mesmo e lá, lá, lá. Lá vem clichê, sermão e cristandade.
Por isso, com ou sem loirinha de sardas, bom mesmo é ter e estar entre amigos. Por esta sacana obrigatoriedade de votar confiança no vazio das incertezas dos outros, de jogar de contente sabendo bem por onde estão as vias de descontentamento.
Ainda ontem meu queridíssimo disse ao telefone que o inferno são os outros, mas se os outros chamam sua mãe de tia, conhecem seu mais novo segredo e racham conta de restaurante com você, eles fazem uma das coisas mais complicadas: relativizam o inferno, põem em dúvida o caos.
E eu zelo pelas definições mais exatas possíveis dos momentos e circunstâncias. É chato estar naquele momento bolero sem saber se ri ou se chora, querendo Trio Irakitan de trilha sonora. Aí vem os seus amigos e lhe impedem de sentir com extensão e densidade aquela raiva mortal que você pode facilmente devotar a um estranho qualquer, que por um profundo sarcasmo da vida se envolveu em uma série de enganos com você. E no fim você ainda tem que posar de pilar da sabedoria, conciliando, ouvindo e compreendendo, porque aquele outrem você não pariu, mas aprendeu a filiar-se aos laços que os irmanam. Bonito isso, né? Fora das bem traçadas linhas de um editor de texto há bem mais formatações e nuances. Isto claro, supondo uma condição ideal, quando há de fato amizade e você é sentimental, maleável o suficiente.
Caso seja, fica mais bonito chamar de aprendizado. Não, isso não é apenas um clichê de mãe, padre e pedagogo. Se você não aprender nos infernos relativos, os absolutos vão tragar a beleza dos seus dias e o caos vai ter sempre a dimensão de abismos.
Bom mesmo é ter e estar entre amigos, para eles lhe darem a real dimensão da dificuldade de viver e dos enganos que lhe podem ter levado a ter desafetos. Porque sempre que meus amigos angariam minhas incertezas, me decepcionam ou me deixam na dureza da indefinição dos momentos, eu fico pensando quais são mesmo as medidas com que mensuro o outro, todos os outros, inclusive aquela que se atracou com meu suposto protótipo de namorado. E é mais fácil suportar os dissabores. Aí você chama de aprendizado e fica tudo mais bonito.
Mas se você não entende da beleza de Polyanna, do desafio do seu jogo e da sabedoria escondida na repetição do clichê, quem avisa, amigo é: ainda há muito por aprender.



Ama o próximo como a ti mesmo, com todas as equivalentes implicações possíveis.

E eu aqui, no relativo caos.

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