Sabes sabiá?

10:31


















Gania. E sabiá, como bem sabe o sinhô e a sinhá, não gane. Não nos deu canto algum no primeiro mês de sua chegada. Assim veio a sabiá de meu pai. E ainda que eu não soubesse como se define o sexo dos passarinhos, ela e suas informações já chegaram antecedidas de artigos e preposições femininas.
Não tardou que eu pai dissesse que a sabiá era mesmo uma bicha porca, vivendo por entre seus excrementos e alimentos sempre frescos e a água sempre suja. Eu lhe disse que, em verdade, a sabiá era mesmo uma bicha sem liberdade e que a masmorra que chamavam gaiola deu a um ser, que tinha todos os ares e céus, um teto e muitos limites. Que seus excrementos que adubaria flores e frutos lhe davam agora a fama de porca e, sua água sempre suja, era a negação dela em permanecer suja, em não se lavar.
É verdade, né? Só isso me disse olhando para a sabiá que nos meses seguintes mutilou-se por forças de tantas tentativas de protesto. Batendo-se nas grades, e em malogradas tentativas de vôo, nas bicadas furiosas que por pouco não lhe arrancaram o bico. Feriu asas e bico. Meu primo disse: ficou cotó. E meus protestos breves e informais por sua pequenina imensa liberdade cessaram no fim da vida de suas asas.
Ainda assim não aceita pacificamente nenhum movimento que se faça em sua direção. Se vou dar-lhe de comer, de beber ou de banhar-se ao sol, faz confusão úmida, molha quem está por perto, ganindo forte, agitando os pedaços que são tristes reminescências de asa. Um quadro tristíssimo, exasperador. Mas quando o faz em meus dias difíceis ficamos empatadas, entre ganidos e xingamentos, eu sempre paro antes, com a comodidade da inequiparabilidade das linguagens e com o aval implícito da ciência dando-me a vitória contra quem nunca poderá insultar com tanta baixeza.
Outro dia meu pai me pediu para alimentá-la. Quase escapei. Toda arrumada, já de bolsa nos ombros o telefone tocou e, a despeito da sincera vontade de desobedecer a ordem que se camuflara em doçuras de pedido, fui novamente encontrá-la. Rebeldia só de me avistar em seu condicionado horizonte. Ignorei seus ganidos que, vez ou outra, tinha a curiosidade da possível tradução em humanês.
Salpicou minha blusa branca com sua água suja e minha revolta nunca foi tão grande. Xinguei todos os meus fantasmas na pessoa de meu pequeno bode expiatório e, na animosidade do meu aflorar de desabafo, entre os ganidos da sabiá e a irritação de já pensar a nova blusa, deixei a gaiola aberta, coisa de que só me dei conta quando acordei de meus devaneios irritadiços, com o silêncio de uma rebelde que deveria estar ganindo. Continuei com a vasilha da ração na mão, de costas para a gaiola temendo uma causa mortis por insultos.
Virei e ela estava silenciosa, de frente para a saída da gaiola aberta, para a oportunidade única de que se ressentiam suas lembranças de asas. Simplesmente não podia.
E as sabiás seguiram expiando impossibilidade e falta de coragem no execício de conviverem entre seus breves encontros, de confortáveis e inequiparáveis insultos. E o pai seguiu soberano.

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2 comentários

  1. Um dia - tenho medo - de ser eu a sabiá.

    Um beijo, minha preta. Lindo texto!!!

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  2. Muito lindo... Ainda a liberdade o medo nos detém... mas ao medo juntemos a coragem para voar...

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