Licença, por favor

11:52

 Ainda tem lugar no pneu


Algumas situações me deixam reflexiva, a exemplo de bons livros, um dito profundo, um ônibus lotado. Não apenas um ônibus lotado, ônibus qualquer , esse infortúnio comum, provação diária. É aquele ônibus que, por nome de trajeto você só pode denominar ''mundo'', que aliás é uma lenda urbana que cerca vários deles: dão a volta ao mundo e você, atordoado passageiro, está tão estressado que não olha para o lado, para ver o japa que está vendendo importados ou o som está muito alto pra você perceber os mariaches mexicanos à esquerda ou alguém, perto da porta da frente, pregando em línguas, alguma que não seja a sua. E você nem viu o esquimó que desceu no ponto anterior.
Pudera, mesmo seus olhos estavam apertados entre tantos corpos humanos.
Mas o que realmente me tira do sério, mesmos nos dias em que eu poderia levitar de tanta leveza de espírito é o infame pedido de licença. Não qualquer um, mas daquele passante-esbaforido, daquele passante-impetuoso, que a despeito de ver-lhe comprimida, em um desafio ostensivo às leis da física, ele/a lhe diz o displante como quem dispensa uma desnecessária educação: "Licença, por favor?" Não menos pior que a tentativa floreada que só pode soar mais irônica e ferina "Com sua licença, por favor?". Eu me contorço (metafórica e internamente, claro, não há espaço) e sinto arder na cara o sangue que o aperto e a raiva trouxeram ao rosto. Não posso, imediatamente ao momento, deixar de cogitar respostas das mais diversas:
Sincera: "Não"
Profundamente Altruísta: "Me jogaria pela janela, mas não consigo me mover"
Contrapartida: "Dinheiro, por favor"
Sonhos iguais: "A Mega Sena, por favor"
Descontraída: "Profissional ou de motorista?"
Ilegalmente descontraída: "É comprada, quer assim mesmo?"
Descontraída e sincera: "Não tenho, faltou grana"
De nível superior: "Meu curso só forma bacharel"
Tecno-Futurista: "Desejando, telestransporto também"
Dragon Ball: "Do ponto eu pude pressentir o perigo e o caos, e posso sentir o ki de cada ser humano desse, mas não sinto minha própria perna."
Dragon Ball 2: "Meu nível de treinamento não permite a fusão com a pessoa aqui da frente"
Dragon Ball 3: "Se eu me comprimir mais um pouco, não vou só sentir, mas vou ser invadida pelo ki do quem aqui da frente"
Dragon Ball 4: "Olha, nem Dragon Ball, nem Ben 10, nem nada que hipoteticamente me tire daqui é verdade."
Mas eu nunca respondo a contento, não sei se por uma questão cristã de cordialidade de amor ao próximo, por um respeito ao protocolo habitual ou uma covardia implícita para esses impasses. Emito apenas um "ulmhum" (sim, assim, com um l, com profundidade), projeto para frente o ombro que estiver mais próximo do/a abençoado/a, em um fingimento solidário e cínico e aproveito logo para juntar no centro do rosto minha boca contraída e uma das minhas sombrancelhas enquanto reviro os olhos, em uma estratégia formulada para que os passageiros do meu lado, percebendo meu prazer, quando se forem, não peçam a mesma coisa. Mas, poucos se comovem e, das três, uma: o protocolo irrompe pela boca antes que entendam que o teletransporte ainda não é possível; eles amam minhas expressões faciais ou, ainda, querem meu corpinho nu. E isto (minha estratégia), parece que é o mesmo que pedir coisas equivalentes a "me usa, me abusa", "me leva contigo", "me deixa as marcas desse nosso contato tão íntimo", "não diz nada, vem!", "quem falar perde a brincadeira".
Ônibus não é um meio de transporte, é um meio de consciêcia corporal e elevação espiritual.

You Might Also Like

0 comentários

Populares

Like us on Facebook

Flickr Images