A ameixa ali

17:44






Eu devia ter uns 14 anos. Achava que ameixa passa era o retrato fiel da ameixa in natura e intimamente me soava desconfortável comer algo que parecia já ter crescido envelhecido. Já tinha comido um pedaço acidentalmente no pudim, ao pedi-lo no restaurante no qual pedia pudim de sobremesa todas as vezes. Mas só soube depois, quando meu pai comentou minha repetição descrevendo o pudim. Nem percebi que comi, era um pedaço irrisório, tratado como um igrediente qualquer, pensado como algo exótico, do qual a maciez me fez engolir rápido, antes que por ânsia ou curiosidade eu tirasse da boca e tivesse algo do que me enojar pelo resto do dia. 
Um belo dia, belo mesmo porque adoro ocasiões festivas, eu estava lá sentada e compenetrada em não aparentar tédio, quase cordial e feliz por estar ali, e de fato, não era de todo ruim. Maquiar, vestir, subir no salto, comer doces, sempre gostei de festas. Pois bem, de volta ao tédio, só as guloseimas e papos entre as mulheres mais velhas que sobravam na mesa podiam combatê-lo. Às vezes, só as guloseimas.
Em festa de pobre, a hora da liberação dos doces finos é quase que uma premiação, simbólica, claro, pelos gastos para comparecer ou por ter tolerado todo o protocolo festivo até ali. Naquela época, a época em que começaram a ser feitos, eram ainda mais caros e mais esperados, por isso mereciam até que a maledicência e as ironias fossem suspensas em respeito à sua chegada, principalmente se fosse pelas mão da dona da festa.
Na primeira mordida fiquei feliz que pela loteria festiva o meu doce fosse recheado por coco, sugerindo uma similaridade com meu chocolate preferido. Mas a segunda foi estranha, a maciez de algo que eu não identifiquei me fez hesitar e, novamente eu não podia cuspir, nem dar a impressão que eu corroborava com a maledicência contra a festa e sua bem quista dona. Comi. De novo. E mais outro. E até o da criança que mordeu e não quis. Perguntei a meu Supremo Oráculo, minha mãe, se aquilo era ameixa. Ela confirmou e adicionou, como se soubesse do tapa sem luvas que dava nas minhas loucas restrições "Só agora você não gosta, ou não gostava, né? Você adorava olho de sogra". Pronto, eu era uma menina de 14 anos boba, com restrições infantis. Comi mais um de consolação, gozando do bem querer da filha da dona da festa que contrabandeou mais dois para o guardanapo que escondi no colo. Praticamente um prova de amizade naqueles tempos.
Daí em diante, todas as boas festas guardavam o potencial da ameixa. Comia os doces finos, aventurando em cada tipo achar a ameixa, preferencialmente acompanhada pelo coco, mas nunca rejitada por andar com o amendoim, ou com a safada pasta de doce de leite, nem mesmo pela audácia da criminosa pasta de leite condensado.
Com o tempo, o doce fino com ameixa foi rareando no meu círculo de festividades, e quando havia, em geral, era um ou dois fragmentos safados, e me davam o parâmetro da situação ou desprendimento econômico de quem deu a festa. Ameixa inteira: temos alguém subindo na vida ou esbanjando aqui.
Enfim, chegou o tempo que parei de procurar, que os doces finos são descaradamente feitos com chocolate 90% gordura hidrogenada e os anseios apocalípticos começaram a me assaltar por conta deste mundo louco. Não havia esperança. Nem ameixa.
Mas, depois de tanto tempo, neste dia de cansaço e desesperança, resgatei três docinhos finos da festa da amiga do meu namorado, guardados na geladeira, para adiar o prazer que já tivera na festa, apesar da ausência da ameixa. Comi o primeiro em duas mordidas, doce de amendoim não é o meu forte, lembrei. Tampouco combates que não são feitos em campo aberto, com as regras claras. Essas coisas me entristeceram. Pausa para o segundo amendoado. Fui indecisa para a primeira mordida, tanto que nos primeiros segundos notei uma maciez conhecida. Loucura, impensável aquela ameixa ali. Maldade: no segundo pedaço o pedaço de ameixa era ainda maior.
Faltava um último doce, igual ao primeiro e ao segundo. Que dúvida exasperante. Não deveria ter achado a ameixa no segundo. Agora eu estava com aquela expectativa boba, quase adolescente. Coragem, mordida decidida, decepção, sem ameixa, mocinha. Segundo pedaço na mão, tristeza. Olhei e ri. Algo me disse, "olha a ameixa ali". Mais uma loucura despertada. Meu escapismo,  todos os resquícios da religião e provavelmente o dia intensamente frustrante me disseram do caráter pedagógico do encontro com a ameixa.
Aí decidi que, loucura ou não, estava ali o delicioso Misterio Pedagógico de Deus agindo, pelo menos para meu conforto nesses dia sem experança ou ameixa. 
Como comi aquele pedaço! Como me deu vontade de escrever coisas piegas depois daquela macia doçura...



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2 comentários

  1. Olha o que essa jovem consegue fazer com uma simples ameixa! Amo a profundidade presente na escrita dela!

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