Da fuga fundamental

12:10


Aos meus amados:
meu melhor amigo e o namorado.



Queridos,

Hoje eu comprei 5 livros e como vocês devem imaginar, estou exultante. Começou para mim um delicioso suplício de espera, um prelúdio de Felicidade Clandestina, se a memória de Lispector me permite citá-la. Espero-os para cheirá-los, marcá-los com minha caligrafia mais cuidadosa e feliz e comê-los como aos bolinhos de chuva da infância.
Acontece que, no ato, reminescências brotaram de minha memória, da coxa pura, daquela que era pura e mancava, que um dia conheci, e a quem acolhi entre certo pesar e condescendência.
Ela muitas vezes disse que os livros eram seu refúgio,  que eram lugares para ir e estar, como se a liberdade ali, naqueles tipos impressos, gozasse de uma licença inverossímil para a sua realidade. Por isso, tantas vezes ela expedicionou esperanças às prateleiras e guardados de sua mãe, e tantas vezes foi por ela presenteada, e durante tanto tempo isto serviu para adoçar, colorir e acolchoar o cuidadoso cárcere amoroso de sua infância e adolescência.
E tanto lhe deu os livros, que muito quis do mundo, quando já não bastavam as letras e, tanto mais quando lhe vieram as letras densas, dos bancos do universo de diversidade que lhe disse para crescer. Não que findasse ou minorasse esse único amor sem terríveis decepções. Mas ela quis decodificar as letras nas intensidades do mundo e não seria separação este novo casamento.
Parente que sou, achei herdar dela, desde o novo nascimento, esse amor e suas pequenas idiossincrasias, como se intacto viesse de sua mente púbere.
Mas quem terá poder, sem em medida alguma dar-lhe vazão? Vejo-me entre outras prioridades e dispêndios, entre outras necessidades prementes, quase sem arrependimentos, pagar meu tributo a este amor que treslouca um tanto nesta amante. Penso se mais uma vez, por hábito, não me aparento com ela, transcendendo as prateleiras e guardados da mãe, expedicionando esperança em outros tesouros. 
Enxerguei agora, pela primeira vez, depois de tanto ver, que meus livros não mais cabem nesta prateleira em comum. E que a minha se avoluma em seus conteúdos antes que haja suas forma limítrofes. É agora a mãe da coxa que vem cá cortejar meus livros, entender de meus desejos, de meus gostos.
Curioso é sentir este medo brando de que haja fuga no ínterim dos desejos. Que esta estocagem de alimento vire para trás minha cabeça a dizer com carinho para a pura que mancava que, "não, não, meu bem, não sofreremos mais a angústia de tê-los esgotado ou de não desejá-los por serem mais que tudo, frutos dos desejos de outrem". E mais medo tenho desse plural que a ela me irmana, já que em tantas coisas fiz por enterrá-la e cá, talvez, estou eu, a acalentar suas angústias, a prover seus desejos.
Que posso fazer quando o amor me chama, quando se faz verbo imperativo?
Que venha do mundo a lucidez, pois eu bebo de alucinações doces nos meus livros.

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