Máquina de fazer neve

20:53






Sabia que estava sonhando, mesmo, ou talvez, principalmente pelo frescor do ambiente que, ao invés de ser gélido ao extremo e massacrar meus sentidos -  como seria de esperar -, não passava de um frescor sugestivo, de um aviso do corpo: "estamos sonhando, mas com nem tanto realismo assim". Não podia olhar para os meus próprios pés. Eu sabia que meu sistema locomotor onírico não obedeceria o comando, mas eu sentia, como que por um pressentimento que não sabia gritar, que eu não estava adequadamente vestida, que estava, se não de todo, então muito próxima de estar extremamente vulnerável ao frio. Cogitei estar com meu short mais curto, pé de sandália, na iminência de ser de repente assaltada pelos sentidos em sobrecarga.
Mas eu só saberia dizer da brisa e de seu frescor, da sua novíssima imensidão, vasta e monótona. Parece que o sol ia abrindo meus olhos e o paredão de gelo à minha frente ia ficando imponente, ao passo que eu sabia que ele investia-se na paisagem com minha permissão, como se eu houvesse deliberado compor com cada floco de neve aquele mundo de existência sólida à minha frente.
E de repente eu senti no pé que havia algo mais gelado naquele meio passo entre estar acordada e sonhar. Pressenti congelar meus membros inferiores, recuei instintivamente, mas, no caminho que os pés ainda iam fazer do fim da cama em direção a favor de minha posição fetal, as pernas sentiram que a cama estava gelando e molhando, de repente coluna! No segundo seguinte salto, no desespero do frescor muito real no rosto. 
Era a brisa conhecida, com um quê de insolência a insinuar-se no meu mundo acordada. 
Olhei ao redor do meu quarto-caixeta com os olhos recém acordados e pouco crédulos de ver aquele sem fim, por menor espaço, ainda mais sem fim, de neve a soterrar tudo quanto antigamente podia-se ver no quarto sem ocupação do sonho.
Agora eu sentia doer um pouco os ossos. Aquela dor conhecida da infância, que me presenteara algumas várias privações. Eu sentia, como sempre, que a simples sugestão da presença de tanto gelo me privaria do sorvete, do sereno, do banho de chuva no fim de tarde, do banho de mar no dia taciturno. Onde estava a minha mãe? Com a neve a conter-se ameaçadoramente pelas beiras da cama, havia tantas privações a gerenciar, mas, eu estava sozinha no quarto onde só cabia minha existência viva.
Olhei as mãos. Tudo mais soterrado. Todas as possibilidades depois de tanta evolução humana. Eu ali a saber de umas tantas possibilidades de improviso sob a neve logo a esquerda dos meu pés, mais ou menos no meio da neve na direção do meu nariz. Mas, além de um cérebro que só chegava a mensurar, eu só tinha as mãos. Já com frio.
Desde o sonho eu já me sentia vassala dessa vastidão mal contida entre os quatro rebocos surreais do quarto que já não parecia caber no meu cotidiano. Tudo predizia minha conclusão adiada que só as mãos me serviriam a cavar, a lançar e moldar, sozinha onde ficaria o sangue do meu útero, a pele do passar do tempo, o cabelo na deserção diária, a água e a vida do meu corpo.
Eu senti cansaço, derroguei permissão a cada floco de neve existir, sem poder, no entanto imaginá-los inexistindo em totalidade. Parece que deitei de novo, que dormi com a neve e o medo. E o frio e a dor que os ossos avisavam, que entrei em um transe meio acordado. Quanta paz eu quis forjar com a neve! 
Eu tomaria todo sorvete da infãncia debaixo da chuva.

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